O Administrador e a Cidadania

Não há atividade humana minimamente estruturada no mundo moderno que não se realize por intermédio de organizações. O mundo globalizado é um mundo de organizações.

É dentro de uma organização que se exerce ou não se exerce a cidadania, que se encontra ou não se encontra a concretude de realização dos direitos humanos.
É a organização que discrimina o negro, a mulher, a criança, o idoso, o portador de deficiências, o imigrante, as ditas minorias étnicas, religiosas e sexuais. É também numa organização que o totalitarismo encontra as suas mais veementes formas de expressão.
A organização é o espaço profissional de trabalho do administrador, o seu lócus próprio de reflexão e de ação.
É numa organização que a cidadania se realiza ou não, que a democracia expressa a plenitude de suas qualidades e de seus defeitos, de suas forças e de suas fraquezas. Mas é também numa organização que o totalitarismo concretiza as suas mais cruéis formas de coisificação do homem, tornando-o mero objeto da vontade de alguém que detenha episodicamente o poder.
Esse é o grande papel do administrador para a cidadania: obter resultados organizacionais por intermédio da realização humana, compatibilizar a realização de um (interesses da organização) através do outro (interesses do empregado), operacionalizar a democracia cidadã no cotidiano das pessoas.
Os desafios da Administração face à democracia cidadã
A verdade é que o bem (no sentido moral) e os bens (no sentido econômico) nem sempre se dão bem, correlacionam-se adequadamente, têm compatibilidade. Eis aí um grande desafio para a administração.
A questão moral (o que devo fazer?) se coloca para todos indistintamente, para mim e para você, independentemente de nossas profissões e posições dentro da organização, de nossas trajetórias existenciais, de níveis de renda, de locais de origem.
A moral se instalou no centro dos debates no mundo das organizações a partir dos anos 1980. Passamos a viver a hegemonia do “politicamente correto”. A moral é o tema da moda e o tema na moda acaba se tornando virtude. As organizações agora querem ser morais, “politicamente corretas”.
Assistimos assim a um retorno da moral no sentido do discurso por organizações que desejam se apresentar como parte da aristocracia da virtude no conjunto da sociedade.
Não é que as pessoas sejam hoje mais virtuosas do que antes. Fala-se muito de moral nos ambientes de trabalho. Mas dela se ressentem muito nos comportamentos humanos nas organizações públicas e privadas, tanto  nas pias quanto nas lucrativas.
As pessoas em geral, e os jovens em particular, abandonam a política e empreendem um retorno à moral, agora rebatizada de direitos humanos (a palavra moral é velha, antiquada e arcaica); chamam também de solidariedade, de humanismo, de responsabilidade social, de empresa cidadã, de desenvolvimento sustentável, de ética empresarial, de proteção ao meio ambiente.
Há 40 anos, contra a fome gritava-se pela revolução. Hoje, contra a miséria se avolumam os programas assistenciais de governos e de empresas, de ONGs e de igrejas, de clubes de serviços e de instituições de benemerência. É a ação humanitária empresarial que vai construir um novo mundo, afirmar o lugar comum dominante na hegemonia do pensamento único prevalecente mundo das organizações e na sociedade em geral.
 Diante dos problemas que são coletivos, sociais, conflituais por excelência, logo políticos, a tendência é oferecer respostas individuais, morais, pretensamente éticas, para não dizer até ingênuas, sentimentais e emotivas. Claro, todas essas ações são perfeitamente respeitáveis; nada tenho contra esses programas de assistência social, mas , como é obvio, são igualmente por si só incapazes de resolver o problema como se propõem fazê-lo.
Antes, na Geração dos Anos Dourados, se pensava que a boa política seria a única moral necessária. Já para os jovens de hoje, a moral é tudo! E, assim, uma boa moral lhes parece ser uma política suficiente.
É evidente que antes era um equívoco julgar que a política poderia fazer às vezes da moral. Mas outro é o erro hoje: acreditar que a moral – mesmo rebatizada de direitos humanos, de solidarismo, de humanismo, de empresa cidadã etc – possa substituir a política.
A sociedade se ilude ao contar com programas sociais para acabar com a miséria. Ilude-se, de novo, se conta com o humanitarismo para substituir a política externa ou para minimizar os problemas de imigração. E assim por diante.
A moral e a política são duas coisas distintas, ambas necessárias, mas que não podem ser confundidas sem comprometer o que cada uma delas tem de essencial. Necessitamos das duas, e da diferenciação entre elas. Necessitamos de uma moral que não se reduza a uma política, mas necessitamos também de uma política que não se reduza a uma moral.
E na medida em que os jovens que ingressam nas organizações têm cada vez menos a sensação de poder influir coletivamente sobre o seu destino comum – que é a verdadeira função da política – eles tendem a encerrar-se no terreno dos valores morais.
Vivemos assim uma situação ambivalente: se por um lado saudamos os jovens porque empreendem uma espécie de retorno à exigência moral ou humanista, por outro lado lamentamos que o façam em detrimento de toda e qualquer ação propriamente política.
O elo mais fraco hoje no contexto brasileiro não é a moral, como alguns crêem, mas a política.
Os bons sentimentos e as boas ações fazem sucesso, mas o descaso e o desinteresse pelas questões públicas são alarmantes. O elo mais frágil da sociedade brasileira não é a corrupção, mas as instituições políticas que a permitem medrar sem limites.
Apoliticismo e a ação do Administrador
O apoliticismo humanista e bem pensante é o vazio de participação cidadã de nossa sociedade.
O apoliticismo é uma doença intrínseca à democracia e à cidadania.
A conquista da democracia formal conduz inelutavelmente à apatia e ao descaso, ao desinteresse de participação política.
A abstenção de participação nas votações, a generalização da critica e a descrença na política e nos políticos, a mediocrização da ação política profissional, contribui cada vez mais para uma pior qualidade moral e intelectual da representação política eleita.
O apoliticismo é o exercício da cidadania pelo abandono da perspectiva de que se possam equacionar questões de interesse público ou do bem comum pela via das instâncias de representação eleita, ou seja, pelas instâncias inerentes à democracia representativa cidadã.
O remédio para o apoliticismo será sempre encontrado na própria democracia. Cura-se a doença do apoliticismo com maior democracia, com instituições que funcionem e se aprimorem com debate e transparência, com a convivência com o contraditório e a escolha pacifica entre diferentes perspectivas e alternativas, com a participação e a contribuição dos distintos atores da sociedade.
Impregnado por essa cultura de alienação o administrador também se afasta cada vez mais no cotidiano de seu posto de trabalho de seu compromisso de agente de transformação social, de intervenção nas condições objetivas em que se efetivam as relações de moral/coesão, normas/padrões e objetivos/metas na vida laboral a fim de conduzir à organização a uma realidade mais democrática e cidadã. Vivemos na Idade Media das relações de trabalho pensando já termos atingido o estágio evolutivo do humanismo solidário no mundo das organizações.
As organizações utilizam tecnologias na velocidade dos foguetes e são administradas ainda como se vivêssemos à época do carro de boi.
A democracia cidadã como uma realidade nas organizações
Cidadania é o exercício dos direitos e dos deveres civis e políticos dentro de um Estado. Pressupõe todas as implicações decorrentes da vida coletiva em sociedade. Cidadania é o direito a ter direitos e o dever de cumprir obrigações dentro de uma nação politicamente organizada em Estado.
Não há democracia cidadã sem contradição e sem resolução de conflitos pela via da negociação pacífica.
A democracia é a convivência com a divergência e o contraditório.  Não há cidadania com a hegemonia do pensamento único. Toda monotemática é perigosa. O monotema “politicamente correto” implica substanciais riscos à estabilidade das instituições democráticas numa sociedade.
A Queda do Muro de Berlim e a conseqüente desconstrução do bloco soviético retiraram a alternativa comunista ao capitalismo, ou, se preferir, à sociedade de mercado.
O que significa Bin Laden para o jovem ocidental? Claramente uma opção moral. O Islamismo fanatizado não condena a propriedade privada, o controle dos meios de produção, a sociedade de mercado, a exploração do trabalho assalariado, a discriminação contra as minorias étnicas, sexuais, raciais, religiosas. Pelo contrário, o mais das vezes os agrava dramaticamente.
Bin Laden não é uma alternativa social, econômica, política; é uma alternativa moral para jovens fanatizados pela opção religiosa, que quer fazer as vezes da ação política. Ele simboliza outros valores, ou seja, outra moral ou até outra civilização.
Passar de Lênin e Stalin para Bin Laden não é trocar de adversário. É passar de uma questão para outra. É passar da questão política (contra ou a favor da sociedade de mercado, por exemplo) para a questão moral ou civilizatória, contrapondo os valores do Ocidente laico e liberal, democrático e cidadão, aos da teocracia religiosa.
A sociedade de mercado não precisa de sentido para funcionar. Mas os indivíduos certamente. As civilizações também.
Qual o sentido para a vida? Quais são os valores existenciais predominantes na sociedade? Temos que ter sentido e, portanto, justificativa para a nossa existência.
Antes a contradição se dava contra uma perspectiva de negação representada pelo bloco comunista. Na sua ausência, a sociedade há que buscar uma nova alternativa. Precisa encontrá-la em si mesma, entre uma opção de valores, éticas, morais, institucionais-legais, político-juridicas.
Esta busca é a fonte e a origem da força do “politicamente correto” dominante em nossa sociedade. A essência de todas as suas deformações.
A democracia cidadã em nosso País não vai evoluir efetivamente enquanto se persistir no equívoco de se circunscrever questões fundamentais de nosso tempo como as dos direitos humanos, da proteção do meio ambiente, da sustentabilidade etc como se fossem exclusivamente questões de natureza moral. São também.
No cotidiano da vida em sociedade perpassamos indistintamente por ordens de conduta que nos levam a atitudes e a comportamentos. A democracia em nosso País precisa tratar harmonicamente essas cinco ordens – tecnocientifica ou econômica, institucional ou jurídica, moral, ética e espiritual – porque são elas que formam as doutrinas e as ideologias, as teorias e as práticas que vicejam no mundo corporativo, nas relações de trabalho, nas circunstâncias da vida empresarial e no universo da sociedade.
 A questão moral do “politicamente correto” não é por si só suficiente, portanto. Não basta a si própria. Precisa das demais ordens para se sustentar e avançar.
Artigo do presidente do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro, Adm. Wagner Siqueira